Acabo de rever O Senhor dos Anéis, versão do livro de Tolkien levado às telas sob auspícios da grandiosa máquina hollywoodiana de cinema. Sim, é um bom filme! Só que debaixo de toda aquela parafernália audiovisual de tirar o fôlego, esconde-se aquela velha historinha miada que trata da luta eterna do bem contra o mal, salpicada de momentos irritantes e monólogos discursivos sobre a grandeza e necessidade da luta, a busca por um mundo melhor e blá blá blá... Como produto, perfeito – os lucros obtidos demonstram; como obra de arte, um lixo - nos moldes de tudo que produz a indústria cultural de consumo. E o que me diriam de uma história onde, no lugar de orcs malvados e elfos bonzinhos, tivéssemos dos dois lados apenas homens em toda sua plenitude de serem apenas homens? A história de um povo que se rende ao fanatismo de um homem, Antônio Conselheiro, o profeta do sertão, e o segue para o lugar demarcado por Deus na terra; estão cientes: o fim do mundo está próximo! O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão; a República está para além de um sistema político, é o sinal da besta e Canudos a Nova Jerusalém. O arraial cresce, junto com a mística de seu líder, até chocar-se de frente com o poder constituído. No descumprimento de um pedido feito por Antônio Conselheiro de um carregamento de madeira para a construção da nova igreja do arraial de Canudos, junto à ameaça de, por parte dos sertanejos, fazer valer o ordenado pela força, o estopim de uma crise local que vai tomando proporções fantásticas para além daquilo que nunca foi, nem deveria ter deixado de ser.O poder estabelecido, no afã de cumprir com suas prerrogativas institucionais, - a promoção da paz e a repressão da desordem - enviou-lhes o “legislador Comblain com seu argumento único, incisivo, supremo e moralizador – a bala.*" A primeira expedição com 100 praças, a segunda com 543 e a terceira com 1280 homens chefiados por Moreira César, famoso general linha-dura apelidado "cordialmente" pelos sertanejos de corta-cabeças, fracassaram - antes pela arrogância e confiança na vitória do poderio bélico frente aos bárbaros e pobres sertanejos armados com facões e espingardas, do que pela resistência e organização dos sitiados em Canudos.

Era o milagre! O cumprimento das profecias se realizando ante os olhos dos maravilhados sertanejos. Antônio Conselheiro era, de fato, o emissário de Deus na Terra... Certamente não o era para os que viviam fora das fronteiras dos sertões e que recebiam sob contornos sobrenaturais ou políticos cada derrota das forças governamentais.
Dentro do contexto histórico de mudança de regime político pelo qual o país passava, aliado à hipocrisia e ignorância das classes dominantes e do povo nas capitais que recebiam de longe notícias desencontradas e boatos suspeitos que chegavam do sertão de Canudos, um punhado de fanáticos religiosos encastelados - sertanejos esquecidos pela história, sobrevivendo dia-a-dia sob as precárias condições do meio em que viviam e reagindo as vicissitudes dessa vida - não podiam ser vistos como aquilo que sempre foram; deveria haver uma explicação mais lógica que a própria realidade para alimentar o frenesi e a paranóia que tomou o país inteiro: os sertanejos nada mais eram que marionetes dos conspiradores monarquistas, armados até os dentes com o que de melhor poderia existir em termos bélicos; canudos era o bastião da rebeldia contra o sistema republicano e precisava ser esmagada - estavam abertas as portas do inferno!
Um país inteiro depositou as esperanças na quarta e última expedição enviada para garantia dos alicerces da sagrada República, abrindo, assim, as cortinas para o derradeiro ato final – aquele tipo de tragédia que só a realidade tem a oferecer, com a grandeza que poucos homens são capazes de escrever: montada bem longe de uma verdejante e estúpida terra média, sobre a paisagem seca e inóspita do sertão, a farsa épica da liberdade e a encenação de um crime.
Eis a história de Canudos! E onde estão os diretores do cinema nacional para filmarem nossas epopéias sem atores globais?
* Trecho de Os Sertões de Euclides da Cunha; Legislador Comblain: expressão irônica de Euclides referindo-se à marca das carabinas então utilizadas pelo Exército enviado contra Canudos.


